“Os meus dias são como a sombra que declina, e como a erva me vou secando”.
(Salmos 102:11).
“Não podes ver o que
és. O que vês é a tua sombra”. (Tagore).
Os antigos Egípcios falavam no Ka, os chineses falavam em Kuei, como o “caliban” da obra tempestade de Shakeaspeare, o lado mau e telúrico da alma que contrasta com o lado “shen” de Ariel o celeste e luminoso. Na idade média, incubus e súcubus eram espíritos maléficos, ao que o poeta Heine chamou “doppelganger”. Nos versos de Alfred de Musset: “um étranger vétu de noir, qui me ressemble comme un frére”. Os franceses possuem uma outra expressão suscetível: “bête noire”.
Na mitologia, na história
das religiões, no folclore, na literatura e na poesia, é a sombra um convidado
freqüente, estranhamente ambivalente. É o caso de Sancho Pança em relação à Dom Quixote, o de
leporello no “Dom Giovanni” de Mozart, sombrio e destruidor é o lago de Othelo,
e o comendador de pedra, do mesmo Dom Juan.
A literatura amplamente
ilustra o tema. Na obra “o retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, a figuração
é concretamente simbolizada pelo quadro que carrega, em sua progressiva
corrupção de formas e tintas nunca reveladas na máscara do sujeito. Nas obras
“Dr. Jekyll” e “Mr. Hyde” de Stevenson, a tensão mortal do ego e do alterego é
expressa de forma fisiológica. Escreveu Dr. Jekyll em seu diário: “foi a
maldição da humanidade que esses dois feixes contraditórios assim estivessem
amarrados de modo que, no seio agoniado da consciência, esses dois gêmeos
polarizados continuamente combatessem. E como então se dissociaram?”.
Um dos melhores exemplos é a
obra “o duplo” de Dostoievski, publicada em 1846 quando apenas começava a
surgir sua reputação literária, obra muito influenciada por Gogol em um de seus
temas, e de leitura maçante. Na obra, o senhor Golyadkine é um burocrata
introvertido, complexado, perseguido, antipatizado, que sente por debaixo da
pele a presença muito real de sua sombra, Golyadkine Júnior. A estória possuem
aspectos surrealistas encontrados na obra de Kafka, “avant la lattre”. Tudo é
retratado com violência impressionista e analítica, que tornaram célebres os
romances de Dostoievski. A obra “fausto” de Goethe exorde: “zwei seelen wohnen
ach! In meiner brust”. (ai, duas almas em meu peito habitam).
Às vezes não são duas almas,
são dois irmãos. Um reproduz as qualidades opostas às do outro: Caim e Abel,
Esaú e Jacó, Horus e Seth, Castor e Póllux. No mito universal dos Dióscuri, um
dos filhos de Leda é imortal e representa a sombra positiva de seu irmão,
terreno e mortal, mais forte contraste ainda é o que opõe Apolo e Dionísio,
Richelieu por exemplo, possuía seu duplo sombrio na pessoa de Pere Joseph.
A obra “Mefistófeles” de
Goethe, desempenha uma função essencial no diálogo da consciência heróica
consigo mesma: Mefistófeles é a segunda alma de Fausto, “parte daquele poder
não entendido que sempre deseja o mal, e trabalha para o bem”. É a sombra a
instância psíquica que alenta o problema moral, que desperta culpa, que infunde
o medo, como na obra “waste land” de T.S. Elliot, onde ele escreve: “and I will
show your something different from either your shadow at morning striding
behind you. Or your shadow at
evening rising to meet you: I will show you lear in a handful of dust”.
“porque tendo a lei a sombra
dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos
sacrifícios que continuamente se oferecem a cada ano, pode aperfeiçoar os que a
eles se chegam”. (hebreus 10:1). O apóstolo Paulo nas epístolas aos romanos
VII, escreveu: “a lei dos meus membros lutando contra a lei da minha mente, de
maneira que o que faço, não o aprovo, pois o que quero não faço, mais o que
aborreço, isso sim faço. Porque não faço o que quero, mas o mal que não quero,
esse faço, ora se faço o que não quero, já não o faço, eu, mais o pecado que
habita em mim”. Irineu, um dos santos padres da igreja, já usava em sua obra
“adversus heresis” a expresão “umbra”, o zarathustra nitzscheano procura
despedí-la (a sombra) como um fantasma magro, escuro e usado, algo obsoleto,
superado, Pierre Janet referia-se em suas obras às “parties inferieures” da
alma. No entanto, não seria o caso de esquecer a injunção bíblica, mas de
apenas reinterpretá-la: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
“sou uma sombra!
Venho de outras eras
Do cosmopolitismo das
moneras....
Pólipo de recônditas
reentrâncias,
Larva do caos telúrico,
Procedo da escuridão do
cósmico segredo,
Da substância de todas as
substâncias”.
(Augusto dos Anjos,
“monólogo de uma sombra”).
“ich bin der geist der stets verneint”(sou o espírito que constantemente nega).
(“mefistófeles” no fausto de Goethe).
“convém saber que são seis os graus, ou diferenças entre os seres: não vivos,
vivos, irracionais, racionais e imortais. E por fim Deus, que está acima de
todos, abençoado pelos séculos dos séculos. A primeira escala inferior é a dos
seres que não crescem e precisam de vida e movimento, tal como é a condição das
pedras. A segunda é a dos seres que crescem, tem vida e movimento, sem
sentidos, como a erva e as árvores, que de todo precisam de vida insensível e
movimento, não poderiam germinar nem crescer, portanto, os seres que gozam de
vida, ainda que insensivelmente, estão em grau mais elevado do que as pedras e
a terra. Formam a terceira escala os seres que não só crescem e vivem, mas
também sentem, embora não falem, como os animais. A quarta escala é constituída
de seres que não só crescem e vivem, como sentem e falam, mais são mortais como
os animais: os homens. Na quinta escala estão os seres que sentem, entendem e
são imortais: os anjos. Na sexta escala reina o que é imutável, infinito e
simples, por quem toda a natureza referida é inspirada, movida, governada e
regida: Deus. Todas as escalas, à medida que vão subindo, se avantajam pela
nobreza de sua natureza. Assim a árvore se avantaja à pedra, o gado à árvore, o
homem ao gado, o anjo ao homem. E Deus reina sobre os anjos”. (Isidoro de
Sevilha).
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