terça-feira, 16 de outubro de 2012

O SER HUMANO E SUA SOMBRA


O SER HUMANO E SUA SOMBRA







 
“Os meus dias são como a sombra que declina, e como a erva me vou secando”. (Salmos 102:11).
 
 “Não podes ver o que és. O que vês é a tua sombra”. (Tagore).
 
Os antigos Egípcios falavam no Ka, os chineses falavam em Kuei, como o “caliban” da obra tempestade de Shakeaspeare, o lado mau e telúrico da alma que contrasta com o lado “shen” de Ariel o celeste e luminoso. Na idade média, incubus e súcubus eram espíritos maléficos, ao que o poeta Heine chamou “doppelganger”. Nos versos de Alfred de Musset: “um étranger vétu de noir, qui me ressemble comme un frére”. Os franceses possuem uma outra expressão suscetível: “bête noire”.
 
Na mitologia, na história das religiões, no folclore, na literatura e na poesia, é a sombra um convidado freqüente, estranhamente ambivalente. É o caso de Sancho Pança em relação à Dom Quixote, o de leporello no “Dom Giovanni” de Mozart, sombrio e destruidor é o lago de Othelo, e o comendador de pedra, do mesmo Dom Juan.
 
A literatura amplamente ilustra o tema. Na obra “o retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, a figuração é concretamente simbolizada pelo quadro que carrega, em sua progressiva corrupção de formas e tintas nunca reveladas na máscara do sujeito. Nas obras “Dr. Jekyll” e “Mr. Hyde” de Stevenson, a tensão mortal do ego e do alterego é expressa de forma fisiológica. Escreveu Dr. Jekyll em seu diário: “foi a maldição da humanidade que esses dois feixes contraditórios assim estivessem amarrados de modo que, no seio agoniado da consciência, esses dois gêmeos polarizados continuamente combatessem. E como então se dissociaram?”.
 
Um dos melhores exemplos é a obra “o duplo” de Dostoievski, publicada em 1846 quando apenas começava a surgir sua reputação literária, obra muito influenciada por Gogol em um de seus temas, e de leitura maçante. Na obra, o senhor Golyadkine é um burocrata introvertido, complexado, perseguido, antipatizado, que sente por debaixo da pele a presença muito real de sua sombra, Golyadkine Júnior. A estória possuem aspectos surrealistas encontrados na obra de Kafka, “avant la lattre”. Tudo é retratado com violência impressionista e analítica, que tornaram célebres os romances de Dostoievski. A obra “fausto” de Goethe exorde: “zwei seelen wohnen ach! In meiner brust”. (ai, duas almas em meu peito habitam).
 
Às vezes não são duas almas, são dois irmãos. Um reproduz as qualidades opostas às do outro: Caim e Abel, Esaú e Jacó, Horus e Seth, Castor e Póllux. No mito universal dos Dióscuri, um dos filhos de Leda é imortal e representa a sombra positiva de seu irmão, terreno e mortal, mais forte contraste ainda é o que opõe Apolo e Dionísio, Richelieu por exemplo, possuía seu duplo sombrio na pessoa de Pere Joseph.
 
A obra “Mefistófeles” de Goethe, desempenha uma função essencial no diálogo da consciência heróica consigo mesma: Mefistófeles é a segunda alma de Fausto, “parte daquele poder não entendido que sempre deseja o mal, e trabalha para o bem”. É a sombra a instância psíquica que alenta o problema moral, que desperta culpa, que infunde o medo, como na obra “waste land” de T.S. Elliot, onde ele escreve: “and I will show your something different from either your shadow at morning striding behind you. Or your shadow at evening rising to meet you: I will show you lear in a handful of dust”.
 
“porque tendo a lei a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem a cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam”. (hebreus 10:1). O apóstolo Paulo nas epístolas aos romanos VII, escreveu: “a lei dos meus membros lutando contra a lei da minha mente, de maneira que o que faço, não o aprovo, pois o que quero não faço, mais o que aborreço, isso sim faço. Porque não faço o que quero, mas o mal que não quero, esse faço, ora se faço o que não quero, já não o faço, eu, mais o pecado que habita em mim”. Irineu, um dos santos padres da igreja, já usava em sua obra “adversus heresis” a expresão “umbra”, o zarathustra nitzscheano procura despedí-la (a sombra) como um fantasma magro, escuro e usado, algo obsoleto, superado, Pierre Janet referia-se em suas obras às “parties inferieures” da alma. No entanto, não seria o caso de esquecer a injunção bíblica, mas de apenas reinterpretá-la: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
“sou uma sombra!
Venho de outras eras
Do cosmopolitismo das moneras....
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva do caos telúrico,
Procedo da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias”.
(Augusto dos Anjos, “monólogo de uma sombra”).

            “ich bin der geist der stets verneint”(sou o espírito que constantemente nega).
            (“mefistófeles” no fausto de Goethe).

           
            “convém saber que são seis os graus, ou diferenças entre os seres: não vivos, vivos, irracionais, racionais e imortais. E por fim Deus, que está acima de todos, abençoado pelos séculos dos séculos. A primeira escala inferior é a dos seres que não crescem e precisam de vida e movimento, tal como é a condição das pedras. A segunda é a dos seres que crescem, tem vida e movimento, sem sentidos, como a erva e as árvores, que de todo precisam de vida insensível e movimento, não poderiam germinar nem crescer, portanto, os seres que gozam de vida, ainda que insensivelmente, estão em grau mais elevado do que as pedras e a terra. Formam a terceira escala os seres que não só crescem e vivem, mas também sentem, embora não falem, como os animais. A quarta escala é constituída de seres que não só crescem e vivem, como sentem e falam, mais são mortais como os animais: os homens. Na quinta escala estão os seres que sentem, entendem e são imortais: os anjos. Na sexta escala reina o que é imutável, infinito e simples, por quem toda a natureza referida é inspirada, movida, governada e regida: Deus. Todas as escalas, à medida que vão subindo, se avantajam pela nobreza de sua natureza. Assim a árvore se avantaja à pedra, o gado à árvore, o homem ao gado, o anjo ao homem. E Deus reina sobre os anjos”. (Isidoro de Sevilha).


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