terça-feira, 16 de outubro de 2012

CANIBALISMO


CANIBALISMO







 
A mais antiga aparição do canibalismo é no musteriano, derradeiro estágio do baixo paleolítico. Numa gruta de Crapina, na Croácia, se encontram ossos e crânios partidos, numa indiscutível demonstração de vestígio brutal; no aziliense, fase inicial do epipaleolítico, em Ofnet, Baviera, estão crânios dolicocéfalos e braquicéfalos pintados de vermelho. A pintura rubra significava a esperança da ressurreição pelo símbolo vermelho do sangue e da claridade solar. O homem de neanderthal sepultava seus mortos tingindo-lhes os ossos longos de vermelho; o mesmo fazia o homem de cro-magnon, que depois de abatido ainda mastigava seu inimigo. J. Vellard escreveu: “en sus creencias encontramos la explicación de estos hechos. Hemos visto que creen ellos em una segunda vida, en que parece que resucitam com el mismo cuerpo, esto explicaria el hecho de devorar sus enemigos”. Em novembro de 1960 os jornais do mundo todo anunciaram um surto canibalesco no antigo Congo Belga. Soldados irlandeses da ONU, mortos ao norte de Catanga, foram devorados pelos balubas e tribos sulistas; os manganas do kassai voltaram aos velhos ritos culinários. Um aviador belga foi vítima desse tratamento pelos kitawalas.
            São soluções desesperadas de sobrevivência que reaparecem em momentos trágicos, como por exemplo, os famintos no cerco de Perúsia por Augusto, registrado por Petrônio em sua obra “satyricon” (CXLI), os náufragos da Meduse em 1816, a cena do conde Hugolino Della Gherardesca, senhor de Piza em1289; ou por rancor partidário como os habitantes de Cóptus e Tentira no antigo Egito, como narra Juvenal em sua obra “sátira” (XV).
            Na áfrica austral o canibalismo era comum. A carne fervida de uma jovem negrinha revigorava o ardor belicoso dos Zulus; os Bassongos-minos do baixo Cassae no Congo atacaram em 1885 a Wissmann, Muller, François e sua escolta gritando “niama! niama! carne!carne!”. Os chineses bebiam a Bílis porque o fígado era a víscera da vida. Comer o coração é receber coragem. “Rodrigue, as-tu du coeur?” pergunta Dom Diogo no “le cid” de Corneille (I,VI). “O sangue é a alma” dizia Empédocles. Bebia-se sangue nas conspirações para assegurar na cumplicidade o vínculo supremo do solidarismo. Lucius Sergius Catilina em 612 a.c, empregou a fórmula que horrorizou Salustio: “humani corporis sanguinem, vino permixtun, in pateris circumtulisse” e Annaeus Florus escreveria: “additum est pignus conjurrationes, sanguis humanus, quem circumlatum patere bibere”. (Líber Quartus, I). Plutarco vai adiante informando que os conjurados estrangularam um homem e comeram todos de sua carne (Cícero XIV). Nas festas de Tlacaxipeualiztli, no México em 22 de fevereiro, as vítimas sacrificadas eram cozidas e comidas; na Panquetzaliztli, 9 de novembro, a imagem do deus Uitzlopochtli, era feita de massa de milho e sangue humano, distribuía-se em fragmentos aos devotos que a degustavam. Tezcatlipoca, nome solar dos astecas, era representado por um rapaz, acompanhado de quatro mulheres, tendo as vontades como ordens sagradas durante doze meses; ao findar do ano a meia noite, arrancavam-lhe o coração e suas carnes eram servidas as autoridades, conta Brasseur de Bourbourg.
            Em muitas lendas a fome é uma obsessão, como a da “cabeça rolante” que devorava tudo que encontrava, em muitos lugares calamidades naturais ou situações difíceis levaram indivíduos civilizados esfomeados a solução antropofágica. Na guerra do Camboja em 1975, enraivecidos pelo atraso no pagamento dos soldos, soldados cambojanos devoraram o corpo do tesoureiro do governo. Na antiguidade soldados primitivos se alimentavam com os inimigos mortos nas batalhas. A antropofagia pela fome levou na lenda dos uitoto do rio Chorero, o povo que havia saído debaixo da terra a matar o chefe para comê-lo; as moças da lua cheia eram mulheres prisioneiras que quando não engravidavam eram reservadas para a matança, servidas em pedaços, engordadas com muxiba, eram sacrificadas durante os eclipses lunares. O chefe dos kusse começava comendo os olhos e depois a cabeça de seus prisioneiros. Contam os kreyé que um homem da tribo com raiva porque sua mulher não sabia tirar mel, matou-a, assou-a e levou pedaços dela como se fôra caça aos seus parentes. Carvajal falou de canibalismo em comunidades amazônicas: “tinamoston era o guerreiro dessas províncias, gente grande e mais alta que os nossos homens mais altos, andam tosquiados e tisnados de negro. Sua gente come carne humana”. Aureli informou: “do vencido já transformado num cadáver são retirados seu coração, cérebro e fígado, essas partes são cozidas e distribuídas em pequenos pedaços entre todos os guerreiros, e somente eles da tribo vencedora devorando um naco do coração do inimigo abatido, aumentará a sua generosidade, comendo o fígado, aumentará seu valor, pois é no fígado que se reúnem as qualidades de valentia. Assim o acreditam”. Hans Staden e Metraux revelam que entre os tupinambás da costa, as vítimas eram abatidas e depois cozinhadas em grandes panelas de barro. Couto de Magalhães escreveu: “é certo que algumas tribos matam os prisioneiros que capturam nas guerras e comem suas carnes, fazem por vingança e não por alimento, tanto que antes de matar um prisioneiro dirigem convites para todas as aldeias com quem estão em relações”.
            Os índios iroqueses escalpelavam seus inimigos e obrigavam seus prisioneiros a correrem entre duas carreiras de mulheres e crianças com chicotes, paus e facas, acreditavam que comendo a carne de um bravo guerreiro que foi morto pela tortura, absorveriam sua coragem. O calvinista francês Jean de Lery em 1557 escreveu: “esses diabólicos goitacazes, invencíveis na região que ocupam, devoradores de carne humana como se fossem cães ou lobos, são tidos entre os mais bárbaros, cruéis e terríveis povos que existem no ocidente”. Os chefes tupinambás para incitar o brio dos guerreiros, subjugavam e comiam seus inimigos, acomodavam seus prisioneiros em suas aldeias e não só os alimentavam da melhor maneira, como ainda lhes concediam mulheres. Jean de Lery informa que quatro mil índios, inclusive de tribos vizinhas vinham assistir a morte do prisioneiro. Os mura do rio Negro cortavam as cabeças dos mortos e as guardavam como troféus, arrancavam-lhes os dentes, rompiam os cadáveres utilizavam o cérebro para fazer uma pasta com urucu de onde extraíam o vermelho para pintarem seus corpos e fazerem unções mágicas; com a tíbia humana faziam flautas.
            Entre os índios dos rios Içana e Xiê a raiva transbordava: “só pela ocasião da guerra e nos transportes do seu maior furor, mordiam as carnes dos cadáveres dos inimigos e abocanhavam algumas delas, esfolavam e rompiam os cadáveres arrancando-lhes os dentes para deles fazerem suas gargantilhas. Bebiam seus vinhos em crânios cerrados e raspados à maneira de suas cuias”. Os mura espetavam seus inimigos com paus, outros com ossos, outros com pedras pontiagudas, outros lhes cortavam e lhes dilaceravam as carnes em postas e as comiam. Em algumas tribos, soltavam o prisioneiro na mata e em seguida os flecheiros saíam em algazarra para caçar o fugitivo que depois era capturado e comido; entre os tupis, as mulheres colhiam o sangue da vítima com as mãos e bebiam. Cita Aureli que entre as tribos aruak era costume comer os parentes mortos; os arekuna do alto Içana, de origem caraíba, faziam guerra as tribos vizinhas para obter prisioneiros e os comer. Entre os índios miranha, se dizia: “quando mato um inimigo é muito melhor come-lo do que deixa-lo apodrecer, não conheço caça melhor e de melhor sabor que essa, cumpre dizer que os senhores brancos tem um gosto azedo”.

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