A mais antiga
aparição do canibalismo é no musteriano, derradeiro estágio do baixo
paleolítico. Numa gruta de Crapina, na Croácia, se encontram ossos e crânios
partidos, numa indiscutível demonstração de vestígio brutal; no aziliense, fase
inicial do epipaleolítico, em Ofnet, Baviera, estão crânios dolicocéfalos e
braquicéfalos pintados de vermelho. A pintura rubra significava a esperança da ressurreição
pelo símbolo vermelho do sangue e da claridade solar. O homem de neanderthal
sepultava seus mortos tingindo-lhes os ossos longos de vermelho; o mesmo fazia
o homem de cro-magnon, que depois de abatido ainda mastigava seu inimigo. J.
Vellard escreveu: “en sus creencias encontramos la explicación de estos hechos.
Hemos visto que creen ellos em una segunda vida, en que parece que resucitam
com el mismo cuerpo, esto explicaria el hecho de devorar sus enemigos”. Em
novembro de 1960 os jornais do mundo todo anunciaram um surto canibalesco no
antigo Congo Belga. Soldados irlandeses da ONU, mortos ao norte de Catanga,
foram devorados pelos balubas e tribos sulistas; os manganas do kassai voltaram
aos velhos ritos culinários. Um aviador belga foi vítima desse tratamento pelos
kitawalas.
São soluções desesperadas de sobrevivência que reaparecem em momentos trágicos,
como por exemplo, os famintos no cerco de Perúsia por Augusto, registrado por
Petrônio em sua obra “satyricon” (CXLI), os náufragos da Meduse em 1816, a cena
do conde Hugolino Della Gherardesca, senhor de Piza em1289; ou por rancor
partidário como os habitantes de Cóptus e Tentira no antigo Egito, como narra
Juvenal em sua obra “sátira” (XV).
Na áfrica austral o canibalismo era comum. A carne fervida de uma jovem
negrinha revigorava o ardor belicoso dos Zulus; os Bassongos-minos do baixo
Cassae no Congo atacaram em 1885 a Wissmann, Muller, François e sua escolta
gritando “niama! niama! carne!carne!”. Os chineses bebiam a Bílis porque o
fígado era a víscera da vida. Comer o coração é receber coragem. “Rodrigue,
as-tu du coeur?” pergunta Dom Diogo no “le cid” de Corneille (I,VI). “O sangue
é a alma” dizia Empédocles. Bebia-se sangue nas conspirações para assegurar na
cumplicidade o vínculo supremo do solidarismo. Lucius Sergius Catilina em 612
a.c, empregou a fórmula que horrorizou Salustio: “humani corporis sanguinem,
vino permixtun, in pateris circumtulisse” e Annaeus Florus escreveria: “additum
est pignus conjurrationes, sanguis humanus, quem circumlatum patere bibere”.
(Líber Quartus, I). Plutarco vai adiante informando que os conjurados
estrangularam um homem e comeram todos de sua carne (Cícero XIV). Nas festas de
Tlacaxipeualiztli, no México em 22 de fevereiro, as vítimas sacrificadas eram
cozidas e comidas; na Panquetzaliztli, 9 de novembro, a imagem do deus
Uitzlopochtli, era feita de massa de milho e sangue humano, distribuía-se em
fragmentos aos devotos que a degustavam. Tezcatlipoca, nome solar dos astecas,
era representado por um rapaz, acompanhado de quatro mulheres, tendo as
vontades como ordens sagradas durante doze meses; ao findar do ano a meia
noite, arrancavam-lhe o coração e suas carnes eram servidas as autoridades,
conta Brasseur de Bourbourg.
Em muitas lendas a fome é uma obsessão, como a da “cabeça rolante” que devorava
tudo que encontrava, em muitos lugares calamidades naturais ou situações
difíceis levaram indivíduos civilizados esfomeados a solução antropofágica. Na
guerra do Camboja em 1975, enraivecidos pelo atraso no pagamento dos soldos, soldados
cambojanos devoraram o corpo do tesoureiro do governo. Na antiguidade soldados
primitivos se alimentavam com os inimigos mortos nas batalhas. A antropofagia
pela fome levou na lenda dos uitoto do rio Chorero, o povo que havia saído
debaixo da terra a matar o chefe para comê-lo; as moças da lua cheia eram
mulheres prisioneiras que quando não engravidavam eram reservadas para a
matança, servidas em pedaços, engordadas com muxiba, eram sacrificadas durante
os eclipses lunares. O chefe dos kusse começava comendo os olhos e depois a
cabeça de seus prisioneiros. Contam os kreyé que um homem da tribo com raiva
porque sua mulher não sabia tirar mel, matou-a, assou-a e levou pedaços dela
como se fôra caça aos seus parentes. Carvajal falou de canibalismo em comunidades
amazônicas: “tinamoston era o guerreiro dessas províncias, gente grande e mais
alta que os nossos homens mais altos, andam tosquiados e tisnados de negro. Sua
gente come carne humana”. Aureli informou: “do vencido já transformado num
cadáver são retirados seu coração, cérebro e fígado, essas partes são cozidas e
distribuídas em pequenos pedaços entre todos os guerreiros, e somente eles da
tribo vencedora devorando um naco do coração do inimigo abatido, aumentará a
sua generosidade, comendo o fígado, aumentará seu valor, pois é no fígado que
se reúnem as qualidades de valentia. Assim o acreditam”. Hans Staden e Metraux
revelam que entre os tupinambás da costa, as vítimas eram abatidas e depois
cozinhadas em grandes panelas de barro. Couto de Magalhães escreveu: “é certo
que algumas tribos matam os prisioneiros que capturam nas guerras e comem suas
carnes, fazem por vingança e não por alimento, tanto que antes de matar um
prisioneiro dirigem convites para todas as aldeias com quem estão em relações”.
Os índios iroqueses escalpelavam seus inimigos e obrigavam seus prisioneiros a
correrem entre duas carreiras de mulheres e crianças com chicotes, paus e
facas, acreditavam que comendo a carne de um bravo guerreiro que foi morto pela
tortura, absorveriam sua coragem. O calvinista francês Jean de Lery em 1557
escreveu: “esses diabólicos goitacazes, invencíveis na região que ocupam,
devoradores de carne humana como se fossem cães ou lobos, são tidos entre os
mais bárbaros, cruéis e terríveis povos que existem no ocidente”. Os chefes
tupinambás para incitar o brio dos guerreiros, subjugavam e comiam seus
inimigos, acomodavam seus prisioneiros em suas aldeias e não só os alimentavam
da melhor maneira, como ainda lhes concediam mulheres. Jean de Lery informa que
quatro mil índios, inclusive de tribos vizinhas vinham assistir a morte do
prisioneiro. Os mura do rio Negro cortavam as cabeças dos mortos e as guardavam
como troféus, arrancavam-lhes os dentes, rompiam os cadáveres utilizavam o
cérebro para fazer uma pasta com urucu de onde extraíam o vermelho para
pintarem seus corpos e fazerem unções mágicas; com a tíbia humana faziam
flautas.
Entre os índios dos rios Içana e Xiê a raiva transbordava: “só pela ocasião da
guerra e nos transportes do seu maior furor, mordiam as carnes dos cadáveres
dos inimigos e abocanhavam algumas delas, esfolavam e rompiam os cadáveres
arrancando-lhes os dentes para deles fazerem suas gargantilhas. Bebiam seus
vinhos em crânios cerrados e raspados à maneira de suas cuias”. Os mura
espetavam seus inimigos com paus, outros com ossos, outros com pedras
pontiagudas, outros lhes cortavam e lhes dilaceravam as carnes em postas e as
comiam. Em algumas tribos, soltavam o prisioneiro na mata e em seguida os
flecheiros saíam em algazarra para caçar o fugitivo que depois era capturado e
comido; entre os tupis, as mulheres colhiam o sangue da vítima com as mãos e
bebiam. Cita Aureli que entre as tribos aruak era costume comer os parentes
mortos; os arekuna do alto Içana, de origem caraíba, faziam guerra as tribos
vizinhas para obter prisioneiros e os comer. Entre os índios miranha, se dizia:
“quando mato um inimigo é muito melhor come-lo do que deixa-lo apodrecer, não
conheço caça melhor e de melhor sabor que essa, cumpre dizer que os senhores
brancos tem um gosto azedo”.
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