DA MEDICINA
O medo de ofídios pode-se dizer,
é um medo arcaico. Segundo estudos de Washburn e Moore, é uma característica
inata aos primatas. Pesquisas paleontológicas revelam achados patológicos em
antigos restos fósseis e em múmias egípcias: seqüelas traumáticas, evidências
de doenças infecciosas e parasitárias. O faraó Ramsés V, por exemplo, teve
varíola. O fêmur do pithecanthropus erectus, encontrado em Java por Eugene
Dubois, mostrava uma exostose patológica. Margarete Gautier de "a dama das
camélias" era tuberculosa; Shelley, Keats, Castro Alves e Alvares de
Azevedo, todos tiveram tuberculose. José Fernando Cardoso, professor de
tisiologia, classificava a poesia brasileira em três períodos, de acordo com a
tuberculose: a fase em que os poetas morriam da doença, a fase em que ficavam
crônicos e a fase em que se curavam. Franz Kafka, por exemplo, morreu de
tuberculose aos 43 anos de idade.
Os sumérios que viveram na
mesopotâmia por volta de 4.000 a.C., deixaram registrados seus conhecimentos
médicos em placas de barro contendo receitas empíricas e histórias clínicas. Os
assírios e babilônios, que dominaram os sumérios por volta de 2.000 a.C.,
acreditavam que as doenças eram causadas por demônios, contra os quais se
opunham divindades invocadas, através dos astros. Entre os egípcios, os médicos
eram chamados de sacerdotes. Entre os hebreus, a doença não era devida a ação
de demônios ou de maus espíritos, mas representava um sinal de cólera divina
diante dos pecados humanos, como se lê em Êxodo XV:XXVI:
"se inclinares os ouvidos às suas ordens e observares todas as suas leis,
não mandarei sobre ti nenhum dos males com que acabrunhei o Egito, por que eu
sou o senhor que te cura". Ou em Eclesiastes XXXVIII:IX: "meu filho,
se estiveres doente não te descuides de ti, mas ora ao senhor, que te
curará". Entre os hebreus um animal não poderia ser abatido por uma pessoa
que tivesse doença de pele ou que fosse corcunda, para evitar que um portador
de tuberculose da coluna vertebral manipulasse carne para alimentação, e
moluscos eram proibidos para evitar a hepatite transmitida por ostras. Alguns
povos primitivos do oriente médio, cozinhavam o animal novo no leite da mãe. Na
época do domínio romano na Palestina, a circuncisão era causa de humilhação e
deboche para os judeus. Substituindo a circuncisão pelo batismo cristão, São
Paulo removeu um obstáculo à universalização do cristianismo, com a introdução
do "fiscus iudaicus" pelo imperador Vespasiano, a cobrança de um
imposto especial aos judeus era feita mediante a constatação de um pênis
circunciso.
Na mesma época em Roma, os
plebeus se rebelavam contra os patrícios e Hipócrates de Cós (460-377 a.C.)
escrevia sua obra. O mundo grego da era clássica, diz Sigerist em seu
"civilization and disease" era o mundo do apto e do sadio, o ser
humano ideal era uma criatura equilibrada no corpo e na mente. Os gregos
cultuavam, além da divindade da medicina asclépio, duas outras deusas: hygéia,
a saúde e panacea, a cura. Hygéia era uma das manifestações de athena, a deusa
da razão e panacea representava a ideia de que tudo poderia ser curado. De
outra parte, asclépio era associado a apolo.
Pouco se sabe sobre a vida de Hipócrates, o
"pai da medicina", sabe-se que nasceu na ilha de Cós, onde também
nasceram o poeta Philetas e o pintor Apeles. Seu texto intitulado "a
doença sagrada" começa com a seguinte afirmação: "a doença chamada
sagrada não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada que qualquer outra
doença, tem uma causa natural e sua origem supostamente divina, reflete a
ignorância humana". Hipócrates desenvolveu muito bem a observação
empírica, escrevendo por exemplo que "a epoplexia é mais comum entre as
idades de 40 e 60 anos, já a tísica ocorre entre os 18 e os 35 anos". Em
sua obra "ares, águas e lugares", escreveu: "quem quer que
estude medicina, deve investigar os seguintes aspectos. Primeiro os efeitos das
estações do ano e as diferenças entre elas. Segundo, os ventos quentes ou
frios. O efeito da água sobre a saúde não deve ser esquecido. Por ultimo,
deve-se considerar o modo de vida das pessoas: são glutões e beberrões, e
consequentemente incapazes de suportar a fadiga, ou apreciando o trabalho e o
exercício, comem e bebem moderadamente".
Como os gregos, os romanos
tinham conhecimento da influência ambiental sobre a saúde; com os etruscos
aprenderam a construir esgotos e a drenar pântanos. A cloaca máxima, foi
concluída no sexto século a.C., de inicio drenava pântanos para o tibre, mais
tarde foi adaptada para ser esgoto. O primeiro aqueduto trazendo água para a
cidade foi concluído em 312 a.C., possibilitando a construção de banhos
públicos. A máquina a vapor já era conhecida, mas o engenho descrito por Heron
de Alexandria em 135 a.C., funcionava apenas como um brinquedo para crianças.
Sinais de intoxicação por mercúrio e chumbo já tinham sido registrados, bem
como a curta expectativa de vida dos trabalhadores nas minas desses metais.
Escreveria Galeno de Pergamon (130-201), médico pessoal do imperador Marco
Aurélio: "a vida de muitos é condicionada pelo trabalho e é inevitável que
sejam vítimas do mesmo". Somente em 1700, Bernardino Rammazini
(1633-1714), viria a redigir "de morbii artificium", o primeiro
relato sistemático das doenças ocorridas no local de trabalho.
A idade média pode ser considerada
como uma época de pestilências. Epidemias naturalmente já tinham sido
registradas, tanto no Oriente como na Grécia e no Império Romano. Tucidides em
Atenas (430 a.C), e Galeno em Roma (164), faziam menção à elas, sem falar no
próprio Hipócrates. Três grandes surtos de peste bulbônica ocorreram na Idade
Média, o segundo destes surtos em 1347, a "peste negra", matou 27
milhões de pessoas, um quarto da população européia de então. O ocidente
medieval estava despreparado para enfrentar o problema da doença, e a medicina
havia evoluído muito pouco, mesmo assim o medievalismo criou os nomes de Rhazes
(865 à 965), que escreveu um tratado sobre a varíola e a varicela; Avicena (Ibn
Sina, 980 à 1037), autor de um tratado médico baseado em Hipócrates e Galeno;
Albucasis (Abul Quasim), que escreveu trabalhos sobre cirurgias; Averróis (Ibn
Rushid, 1126 à 1198), e seu discípulo Maimônides (Ben Maimon). A idade média
herdou as práticas supersticiosas surgidas com o declínio de Roma. Assim o
livro chamado "de medicina praecepta", escrito por Serenus
Simmonicus, recomendava que os doentes usassem o amuleto com a palavra
"Abracadabra". Sextus Plácidus, tratava febres cortando um pedaço de
madeira de uma porta por onde passara um eunuco, e Marcellus Empíricus, tratava
lesões oculares tocando-as com três dedos. São Cipriano, bispo de Cártago, a
propósito da peste que castigava a cidade em 251, escreveu: "muitos de nós
estão morrendo, quer dizer, sendo libertados deste mundo. Morrer é um castigo
para os judeus, para os pagãos, e para os inimigos de Cristo, para os servos de
Deus é uma feliz partida". Outros escritores da idade média eram menos
piedosos e mais amargos. "Ó feliz posteridade", diz Petrarca numa
carta, "que não conhecerá tão abismal sofrimento". Os médicos, segundo
ele, faziam com sua arte, a vida ainda mais curta, alusão ao "Vita brevis,
ars longa" de Hipócrates; e Bocaccio por sua vez, ambientou à época da
peste, alguns dos mais "picarescos contos já escritos" (Victor
Robinson, the History of medicine, 1943). Em relação à ciência, aos cuidados
médicos e as medidas higiênicas, havia desconfiança e hostilidade. Tertuliano
escreveu: "o evangelho tornou a investigação científica
desnecessária". São Gregório de Tours escreveu: "é blasfêmia consultar
médico ao invés de ir a tumba de são Martinho". São Jerônimo escreveu:
"esta tua pele áspera é pela falta de banho? Lembra-te que quem se lavou
no sangue de Cristo não precisa se lavar de novo". No fim da idade média a
medicina leiga começa se desenvolver em Salerno, Itália. Ali surgiu uma escola
médica que à partir de 1240, começou a formar profissionais licenciados pelo
rei. Surgiram também universidades em Bolonha, Cambridge, Oxford, Pisa, a
Sorbonne e a universidade de Salamanca.
No século XVI, a lista das
doenças que atemorizavam a Europa sofre um acréscimo: sífilis. O nome vem do
poema publicado em 1530 por Girolamo Fracastoro (1478 à 1553), "syphilis
sive morbus gallicus" (sífilis ou doença francesa). Syphilus era o nome de
um pastor que contraiu a doença como castigo dos deuses. Era chamada doença
francesa porque, segundo Fracastoro, tinha aparecido na Itália à época da
ocupação francesa em Nápoles. Em seu "de contagione" de 1546,
Fracastoro menciona a hipótese de que a doença tivesse sido trazida do novo
mundo por marinheiros espanhóis. Porém prevaleciam ainda teorias antigas sobre
a transmissão de doenças: Hipócrates julgava que as doenças resultavam dos maus
ares. Tucidides atribuiu a epidemia de Atenas em 430 a.C, ao envenenamento dos
reservatórios da cidade por inimigos. No século I a.C., Marcus Terentius Varro,
falava em invisíveis animalículos que entravam no corpo pelo nariz e pela boca.
Em Viena em 1679, quando a peste chegou, a população em pânico, abandonou a
cidade. Uns poucos ficaram, entre eles o cantor de baladas Max Augustin, que na
ocasião compôs "Ach, du lieber Augustin". Depois bebeu tanto que
ficou em coma; dado por morto, foi jogado numa vala com cadáveres de vítimas da
peste, mas escapou de pegar a doença por que as pulgas tranmissoras da
"pasteurella pestis" abandonam os cadáveres de homens e ratos logo
que estes esfriam; salvo por esta macabra peculiaridade, Max Augustin viveu o
bastante para popularizar sua canção. O desenvolvimento da anatomia, graças a
dissecação de cadáveres, tornou o corpo um objeto de conhecimento, segundo
Descartes "uma máquina". William Harwey (1578 à 1657), descobre a
circulação do sangue. Thomas Hobbes em seu "leviatã" de 1651, escreve
que o soberano é a alma, os magistrados e os oficiais de justiça são as
articulações; e Jean Jacques Rousseau escreveria: "o comércio, a
indústria, a agricultura, são a boca e o estomâgo (...) o tesouro público é o
sangue".
A sociedade tornara-se mais
complexa, o progresso acentuara as diferenças no interior do organismo social.
Augusto Comte (1798-1857) criador do termo sociologia, via a especialização de
funções, como expressão do progresso social. Herbert Spencer (1820-1903)
desenvolveu as ideias de Comte em seu "princípios da sociologia" de
1867, para ele havia na vida social uma mudança das formas simples para as
complexas. Esta teoria foi elaborada antes da publicação em 1859 de
"origem das espécies" de Charles Darwin. Para Émile Durkheim
(1858-1917) o corpo social era um conjunto de órgãos coordenados por um órgão
central. François Quesnay (1694-1774), médico de Luís XV, insistia na
necessidade de observação, de inquérito objetivo. Os fisiocratas consideravam
que as sociedades humanas eram regidas por leis naturais. Jacques Turgot
(1727-1781), escreveu: "a circulação das riquezas mantém a vida do corpo
político, do mesmo modo que a circulação do sangue mantém a vida do corpo
animal. Adam Smith, em seu livro "a riqueza das nações" (surgida no
ano da revolução americana em 1776), escreveu: "cada homem, contanto que
não transgrida as leis, tem absoluta liberdade para perseguir seus interesses,
da maneira que lhe convém". Robert Malthus (1776-1834), acreditava que,
deixada à própria sorte, a humanidade tenderia irremediavelmente à miséria,
resultante da superpopulação; e para John Stuart Mill (1806-1873), a sociedade
poderia se submeter a distribuição das riquezas às regras que lhe parecerem
melhores, mais ou menos o que escreveria o alemão Friedrich List em seu
"sistema da economia nacional".
Os doentes mentais, que até a
idade média eram tolerados e encarados com religioso respeito, agora são
recolhidos aos hospícios. No início da renascença, a nau dos insensatos (nef
des fous, narrenschiff), percorre rios europeus levando os loucos que são
expulsos das cidades, e dos quais os barqueiros são encarregados de se livrar
(histoire de la folie a l’age classique, foucault, Paris, 1961). O século XVII,
diz Rôsen em seu "madness in society" (Londres, 1968), vê uma mudança
na percepção social da loucura. Predomina agora a visão de Blaise Pascal
(1623-1662): "pode-se conceber um homem sem as mãos, sem os pés, sem a
cabeça até, mas não sem a razão". No século XIX Laplace e Lavoisier
proporam que o grama fosse considerado o peso de um centímetro cúbico de água a
4 ºC; a décima milionésima parte de um quadrante da circunferência terrestre,
fora calculada por Delambre e Mechain. Madame de Stael e Chateaubriand
expuseram o seu desgosto com os matemáticos chamando-os de "bando", e
o poeta Lamartine escreveu: "as matemáticas são as cadeias do pensamento".
Na Inglaterra Charles Babbage (1792-1871), é considerado um dos precursores da
computação e James Watt (1736-1819), graças a revolução industrial, inventa a
máquina a vapor. Lord Kelvin (1824-1807), escreveria: "tudo que é
verdadeiro pode ser expresso em números". Inspirado por Malthus, Charles
Darwin, elaborou o seguinte aforisma. "os seres competem entre sí pelo
restrito alimento, e aqueles que evoluem de forma favorável sobrevivem e
reproduzem seus caracteres biológicos". Karl Pearson (1857-1936),
desenvolveu o primeiro teste de medida da capacidade mental; e Gregor Mendel
(1822-1884), expôs suas leis sobre genética. Na Alemanha, Rudolf Virchow
(1821-1902), correlacionou as epidemias à desigualdades sociais. Em 1846 o
médico dinamarquês peter Ludwig Panum (1826-1885), observou o surto de sarampo
nas ilhas Faroe. Em 1843, Oliver Wendell Holmes, sugeriu que a febre puerperal
era transmitida pelas mãos dos médicos. John Snow (1803-1858), foi um dos
introdutores da anestesia, tendo atendido a rainha Vitória em dois de seus
partos. William Farr apoiava a teoria do miasma, falando em "vapores de
água turva e estagnada". Joseph Golberg investigou a pelagra, comum no sul
dos Estados Unidos. Em 1822 Robert Koch (1843-1910), descobre o agente causador
da tuberculose. Em 1880 Alphonse Laverán (1845-1922), descobre na Argélia o
plasmódio causador da malária, e finalmente Walter Reed (1851-1902), demonstrou
que a febre amarela era causada por um agente filtrável, transmitido por
mosquitos.
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